30 de abril de 2022

Usurpadores

A Democracia é o governo do povo; nela, o fator quantitativo tem prioridade sobre o qualitativo no que tange à maioria das questões que afetam a vida das pessoas. Funciona mais ou menos assim: se em uma casa há dez pessoas e nela se discute a necessidade de uma porta, a questão é debatida e ao final todos votam; se a maioria decidir que não se deve colocá-la, essa é a decisão que prevalece, mesmo que, de fato, não seja a melhor opção. Essa é a regra fundamental que qualifica como mais apropriada a decisão da maioria.

Infelizmente, em casos assim, a natureza humana, por incapacidade de tecer uma boa escala de valores entre coisas muito diferentes, acaba solapando princípios fundadores em favor de interesses inferiores, pessoais ou passageiros. Assim, sempre haverá alguém com vaidade suficiente para tentar subverter decisões com as quais não concorda, desrespeitando o pacto superior, que, no caso, é o da Democracia. Contudo, não faz sentido que uma ou duas pessoas de um conjunto várias vezes maior imponham a sua vontade, superpondo-se a regras previamente acertadas.

Esse tipo de arranjo, em que os próprios envolvidos votam e decidem as questões que se colocam, praticamente inexiste na Democracia tal como a conhecemos, sendo frequentemente substituído pela Democracia Representativa, que nada mais é do que uma adaptação baseada no mesmo princípio. Nesta, as pessoas escolhem determinados cidadãos para que as representem nas casas parlamentares, decidindo as matérias que impactam suas vidas. A lição número um que se tira daí, e cujo reconhecimento é imprescindível para um verdadeiro defensor da Democracia, é que ganhar e perder votações é parte do jogo democrático, e precisa ser respeitado e preservado a todo custo. Especialmente quando envolve multidões, o que dificulta para que os insatisfeitos simplesmente se retirem do convívio com os vencedores.

Infelizmente não é isso o que vemos por aí. Interesses mesquinhos trabalham o tempo todo para boicotar a Democracia, vindos principalmente da parte de quem vive falsamente proclamando o maior amor a ela. Essas pessoas precisam entender que, apesar dos defeitos, a Democracia é o melhor sistema político. Tudo o que sobra daí, em maior ou menor grau, é o risco do totalitarismo progressivo.

Portanto, em virtude da insatisfação com as “decisões erradas” da maioria, abundam políticos, especialistas e oportunistas de toda sorte tentando burlar as regras do jogo democrático, ora de modo dissimulado, ora de modo totalmente desavergonhado. Subterfúgios são constantemente criados e aperfeiçoados para tal.

Compreende-se a insatisfação, mas não se compreende a falta de escrúpulo. É claro que eventualmente algumas decisões podem ser realmente absurdas ou criminosas e, com a responsabilidade requerida, precisam ser evitadas; mas isso deve ser a exceção, jamais a regra ou um subterfúgio.

Essas pessoas que têm se especializado em burlar as regras democráticas são, em termos exatos, USURPADORES do poder do povo, da comunidade. E elas o fazem cinicamente e continuamente, sem que ninguém as confronte em suas práticas.

Para resumir: se perguntassem ao povo, o Soberano da Democracia, se ele está de acordo com o excesso de dinheiro público que abastece partidos políticos, se aprova que se gastem cifras astronômicas com um judiciário que lhe parece pouco eficaz, se concorda que se façam obras descartáveis para eventos caros e temporários, se está de acordo que se patrocinem aproveitadores de todo tipo – tudo isso em um país de pobres - ele responderia um sonoro NÃO! Está claro, portanto, que alguém usurpou o poder do povo e decidiu contrariamente à sua vontade.

Se há votação pelo desmembramento de um estado, pelo desarmamento civil ou por um sistema de governo e o povo vota numa direção, logo aparecem os usurpadores que, inventando mil artifícios, ou propondo novas tentativas, não sossegam enquanto não conseguem o que pensam atender seus interesses pessoais. Podem até ter razão no que buscam, mas sua sanha é via de regra antidemocrática.

Agora, a moda que se espraia por aí é que, sem ter recebido um voto para isso, juízes decidam as coisas que competem ao povo decidir por meio de seus representantes. É uma forma mais fácil e rápida de usurpar o poder e subverter a Democracia; e fica tudo por isso mesmo. Se o tema é droga, aborto, ou qualquer outro, por que perder tempo com o que o povo pensa? Os juízes tratoram a opinião do povo, a Democracia e lhes ensinam o que é certo. Poderia até parecer pedagógico e escolar se não fosse algo realmente antidemocrático, mau e perigoso.

Duro é ver os usurpadores da Democracia falando sobre ela com o povo, como se fosse todo ele formado de ignorantes e repetidores de bordões. Enxovalham a Democracia, depois desdenham da população.

A impressão é que ninguém está aí para o povo, para a Democracia ou para o país. É tudo uma questão de qual grupo tem o poder, o dinheiro e dá as ordens. Não à toa, desde o Brasil Colônia, as elites se esmeraram em manter para si o domínio de fato, e o povo alienado, mesmo quando teoricamente estudado. Assim fica mais fácil iludir e se beneficiar. Se um dia o nível intelectual e moral subir, ficará tudo muito mais penoso para os usurpadores. Portanto, isso de ouvir a opinião do povo todos parecem determinados a evitar.

Para concluir, vale alertar para uma nova moda falsamente democrática: a de que coletivos sociais são o grande futuro da democracia. Não. É apenas outro túmulo onde se poderá facilmente enterrá-la. Os coletivos acabarão todos aparelhados e manipulados por grupos e partidos políticos através de conchavos, corrupção, coação, promovendo apenas as determinações de seus líderes. Um representante de bairro, sindical ou estudantil pode facilmente iludir e promover pautas e pessoas no meio onde atua. Na prática, tais coletivos terminarão por beneficiar apenas os interesses dos maiores e verdadeiros usurpadores da vontade do povo, estejam aqui ou muito longe.

Em suma: o povo nunca é ouvido no que realmente importa.

Para os usurpadores, o povo é apenas um detalhe.

Não!

É pior: apenas um estorvo.



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