28 de maio de 2011

“Cannabis”: a favor ou contra a legalização?

Nos últimos dias, tem ocorrido uma série de episódios que vêm recebendo amplo destaque no noticiário acerca da questão da legalização da maconha no Brasil. São grupos defensores da legalização contra policiais pelas ruas do país, aqueles buscando garantir o direito de fumar seu baseado e de se expressar com toda liberdade, e estes tentando fazer cumprir o que a lei determina, pelo menos por ora, com relação ao tema.

Assim como outros grupos minoritários têm se comportado, organizando-se e, cada vez mais, ocupando postos estratégicos na esfera pública, os defensores do
uso livre da maconha seguem pela mesma via, fortalecendo a voz em um movimento que, entre outras iniciativas, articulou uma espécie de “maio alucinado, ou ...nógeno”, com a meta de realizar, só nesse mês, 17 manifestações pelas ruas de grandes cidades brasileiras a favor do consumo permitido da “Erva do amor”.


A discussão não é nova, nem o uso da droga, que tem registros desde séculos antes de Cristo, mas fumou no Brasil agora, nesses dias, muito tendo a ver com as declarações públicas de “personalidades” nacionais e internacionais. Por aqui, a contribuição mais eficaz, e que tem dado muito mais coragem aos ativistas, é a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos maiores intelectuais brasileiros da atualidade,  e que, através da publicação periódica de seus artigos, tem tentado manter sua influencia na trajetória do país, visando torná-la menos incerta. Embora reconheça vários méritos do criticado governo FHC, nessa questão infelizmente o grande exegeta parece estar dando uma má contribuição. Talvez a questão seja o fato de algumas pessoas abraçarem posições inovadoras ou arrojadas para acrescentar ao currículo, com vistas à posteridade,  muitas vezes sem a devida responsabilidade, apenas para diferenciar-se a qualquer custo da visão média ou dominante na sociedade.

Aqui, embora já tenha, de certa forma, adiantado minha posição sobre a questão, tentarei fazer uma breve avaliação, tentando ver as coisas com o máximo de imparcialidade possível, sem falsear ou esconder evidências maldosamente. Apenas reitero que buscarei, meio contrariado, ater-me aos limites que este espaço faculta para a discussão.

Vamos tentar pontuar os aspectos centrais. Primeiro, devemos considerar a questão das liberdades individuais; segundo, sopesar os aspectos positivos e negativos que efetivamente interferem na vida do indivíduo e que repercutem na coletividade, se optamos por uma ou outra postura diante da questão.

A discussão acerca do primeiro ponto, do quanto o Estado pode interferir na vida do indivíduo, tem tomado a pauta em muitas questões modernas e essa é apenas mais um caso, e que, sofismaticamente, muita gente tem usado de maneira oportunista. Essa postura aproxima-se das concepções neoliberais, por exemplo, mas não dá pra contar a quantidade de gente “importante”, que nega o ideário do liberalismo, intitula-se marxista convicto, mas usa o argumento que o estado não deve interferir nem legislar sobre questões de foro íntimo.

Ora, esse tipo de discurso é realmente incoerente, uma vez que parte de premissas que se opõem. Ilustrando: muitos criticam os governos por serem ineficazes em políticas públicas para provimento em saúde, educação, etc., mas não aceitam que ele tenha políticas para melhorar, por exemplo, a qualidade da merenda escolar. Dizem que isso as famílias decidem, que é um direito inalienável. Até que simpatizo com o Anarquismo, mas não acredito que esse desdobramento de algumas das ideias de Rousseau tenha qualquer chance de funcionar de fato.

E, finalmente, entendo que os governos devem sim ser atuantes,  decidindo sobre questões que dizem respeito sobretudo à coletividade e sobre as questões éticas, porque para isso lhe são delegados grandes poderes. Em outros termos: os governos precisam agir, pautando-se primeiro pelo coletivo, depois pelo individual, recobertos ambos pela dimensão ética (sem referência direta a concepções específicas).

Passemos agora a considerar a questão dos pontos positivos e negativos supostamente provenientes de uma eventual legalização, e o alcance de alguns argumentos normalmente utilizados pelas partes contendoras.

Os defensores da legalização usam como mais forte argumento uma possível redução da criminalidade, relacionada ao comércio de drogas. Pois bem, essa é uma chaga que assola muitos países do mundo, e até mesmo um país bastante sério como os EUA, o maior consumidor mundial de drogas, segundo a OMS. Entretanto, é presumível que para se ter algum resultado significativo na diminuição da criminalidade, seria, no mínimo, necessário legalizar drogas como a cocaína, o crack, LSD, heroína, etc. e isso não vou nem começar a discutir aqui. Depois, é inegável que há muitas mentes brilhantes a serviço do crime, e, mesmo que isso acontecesse, esse migraria, como sempre o faz, ao encontrar barreiras, mantendo seus negócios, sem grandes sobressaltos em virtude da legalização. É, portanto uma visão ingênua, de gabinete, de intelectual “sem noção”.

Outro forte argumento é quanto à questão econômica. Haveria uma “quebra” financeira dos grupos que faturam com o comércio ilegal e, em contrapartida, o governo aumentaria sua arrecadação. Também poderia controlar (mais um contrassenso, dos que negam veementemente o controle estatal) vários aspectos relacionados a um comércio legalizado, indo de questões de saúde pública até políticas de combate ao uso, pela via educativa, fugindo, assim, do modelo repressor policial.

Esse argumento parece inspirar-se no que há de pior no modelo americano, e assume, em situação e momento bem diferentes, pressupostos semelhantes aos das autoridades estadunidenses por ocasião da Lei Seca, nos anos 20, durante a grande depressão.

Os usuários defendem que a erva é inofensiva e, realmente, têm alguma razão. Ela prejudica, mas entre as drogas, é talvez, a de menor potencial. Argumentam que o álcool é muito pior e, no entanto, é legalizado. Tem sim, certa razão, o álcool é um problema social, e os governos não veem mais alternativas quanto a isso. Esmeram-se apenas em coletar mais e mais impostos dos consumidores. Mas a conta volta-se contra o Estado e, pior, contra toda a sociedade. Eu não preciso citar que por trás do álcool surgem acontecimentos gravíssimos: acidentes e mais acidentes de trânsito, mortes violentas relacionadas ao seu consumo, violência doméstica, famílias e indivíduos destruídos, etc. etc. etc. São postos de saúde lotados, pensões, pessoas incapazes de contribuir com a sociedade, entre tantas outras mazelas.  O cigarro? ...deixa pra lá, que é muita coisa.
O fato é que as coisas não seriam muito diferentes com relação à maconha, embora, não tão graves como com o álcool, creio, em quesitos como “violência”.

É, portanto, um argumento cínico e totalmente imoral. Seria apenas reeditar a legalização do erro. Algo pragmático, porém antiético. Mas não podemos negar que seria algo coerente com a maior política vigente no Brasil, a de “varrer o lixo pra debaixo do tapete”.

Sem dúvida que haveria também uma explosão no número de usuários,  convencidos pela competente indústria publicitária brasileira. E teríamos, assim, muitas pessoas sob efeito da maconha no trânsito, indo pela direita, e outras sob efeito de álcool, cruzando-lhe o caminho pela esquerda, sem certeza se o farol está alto ou baixo, e, em alguns casos vendo mais carro e rua do que deveriam.

Também sob efeito da cannabis, seja por meio oral, por chá, ou principalmente via “cachimbo da paz”,  surge algum reflexo negativo para a memória do usuário, alguma perda da capacidade de cuidar de crianças, por exemplo, algum prejuízo para a saúde, etc.

Há, entretanto, um ponto com o qual concordo fortemente: que a mesma pode sim ter uso terapêutico, o que é uma questão de prevalência óbvia. O estado tem obrigação de permitir que cada pessoa possa ser tratada medicinalmente, fazendo uso dos recursos que o conhecimento humano possibilita, com um mínimo de segurança, e isso inclui a cannabis. Para isso, o governo precisa estabelecer uma política eficiente e madura.

O movimento que tem se manifestado a favor da legalização não pode ser, em termos políticos, reprimido a qualquer custo, pois não concordamos com a lógica das maiorias contra as minorias, mas entendemos tratar-se de um grupo relativamente pequeno e bastante setorizado, o que afeta, de certo modo, sua legitimidade. Não há dúvida de que o mesmo representa um percentual bastante reduzido, porém razoavelmente politizado, articulado, e devidamente infiltrado em aparelhos ideológicos de peso, como a mídia, e sabendo aproveitar bem as oportunidades que lhe surgem à frente.

Talvez se devesse fazer um plebiscito para essa questão e tirar a prova dos noves, confirmando ou infirmando a tese de que o padrão cultural, de um ponto de vista mais antropológico, modificou-se severamente nas últimas décadas quanto à questão.

As origens desse movimento, e de muita coisa das sociedades modernas, podem ser encontradas no movimento de contracultura da década de 60 e no ideário hippie, que se opunham sobretudo às guerras, como a do Vietnã, e pregavam um novo modo de vida, frontalmente diverso do modelo tradicional de sociedade, e que são  largamente divulgados e festejados na mídia, quase sempre a partir do  festival de Woodstock, que é um bom exemplo desse tipo de pensamento, através do seu histórico encontro entre sexo, amor e rock’n roll.

Muita gente importante fez parte desse movimento, como é o caso de John Lennon, Bob Marley, entre outros. Qualquer um consegue lembrar de algum figurão do show business que teve ou tem problemas com drogas, como a maconha e a cocaína, por exemplo.

Não se pode saber com segurança os motivos dessa predileção por parte desse distinto grupo, que conta com artistas, fãs, intelectuais, etc. Só se pode conjeturar. Talvez o uso de ervas como a cannabis sativa, ou a ayahuasca,  tenha a ver com a busca pela criatividade máxima, a busca de atingir uma supradimensão, numa espécie de “voo da alma”, ou ainda pra esconder a fragilidade que os artistas precisam a todo custo esconder, para serem admirados, ou ainda, para suportar muitas vezes a solidão acompanhada em que vivem e a rotina estressante e desafiadora que precisam encarar. A cannabis entorpece, relaxa a musculatura e ajuda na tarefa, cobrando seu cachê, claro.

Não sei, mas certo é que exemplos de gente que se afundou com as drogas não faltam. Veja-se a maravilhosa cantora Amy Winehouse, derrubada pelo uso de drogas pesadas, e que começou por um baseado.

Esse é o derradeiro argumento que quero aqui comentar, é o que os críticos da legalização usam ao dizer que a maconha é a porta de entrada para o mundo das drogas mais agressivas. Não irei discorrer muito sobre isso, mas estou convencido de que isso é verdade. Sei de gente que fez exatamente esse trajeto. E não é difícil de encontrar usuários de drogas pesadas que confirmem a tese. Os militares, que têm vasta experiência no assunto, são categóricos ao afirmar essa constatação. Só para ilustrar, vou colocar adiante um pequeno trecho do depoimento de um ex-dependente, ou ex-usuário, como queiram, o excelente comentarista esportivo Walter Casagrande, que concedeu entrevista, há poucos dias, à revista Placar, e falou do seu drama.

Suas palavras deixam clara sua trajetória no mundo das drogas.

“Desde novo eu usava. Na época em que jogava, com 18, 19 anos, eu fumava só um baseadinho. Nem bebia. Saía com o Magrão (Sócrates) e, enquanto ele tomava cerveja, eu bebia refrigerante. Meu uso de droga problemático, doentio, veio bem depois, não envolvia ninguém. Eu me isolava. Me tornei insuportável para mim mesmo”,

Por fim, entendo que se deva pensar o assunto com muita responsabilidade, para, então, se encontrar a melhor solução, a que possa ser a mais acertada para o bem estar de cada pessoa, sem lhe atropelar os direitos, ou, pelo menos, oferecendo uma justificativa plausível. Inclusive, porque o momento pode ser propício para se discutir os caminhos da sociedade.

Bem, nosso país é livre... até certo ponto, pelo menos... e isso é minha módica contribuição ao debate e um pouco do que penso a respeito da questão. Obrigado.

p.s.: abaixo, link mostra um pouco da situação indigesta da liberação na Holanda:

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/05/holanda-proibe-acesso-de-turistas-coffee-shops.html


6 Comentários
Comentários

6 comentários:

Unknown disse...

Le Marc, estou em êxtase com o seu magnífico artigo! Concordo ipsis litteris com tudo que disse e nada tenho ou posso acrescentar , pois não poderia fazê-lo melhor! Talvez, dizer apenas, quem dera um maior número de pessoas tivesse a capacidade de analisar essa questão com tanta propriedade quanto você! Parabéns!

Um grande abraço!

Vinícius Lemarc disse...

Oi, querida Fiesta! Muito obrigado pelos efusivos elogios. Os textos que publico aqui têm o desejo de ajudar a pensarmos sobre questões importantes e que, muitas vezes, não as vejo discutidas de modo muito adequado. Procuro dar minha modesta contribuição. Não os escrevo com ímpeto de perfeição, também não escrevo de modo... desleixado, mas gosto de oferecer coisas que sejam, no mínimo, boas às pessoas. Fico feliz que tenha gostado.
Um grande abraço!
LeMarc

Anônimo disse...

Belo texto. Apesar de hj estar um assunto menos debatido, esse texto mostra mt bem ambos os lados da moeda.Continue a fazer outros,é sempre bom ter opiniões sensatas!Abraço

Vinícius Lemarc disse...

Agradeço ao amigo que comentou anonimamente pela participação no nosso espaço. Espero continuar oferecendo discussões interessantes e equilibradas, em que respeite as opiniões contrárias e as analise de modo justo, sem achar que o que penso é que é o certo. Meu interesse é basicamente contribuir com os debates.
Abraço!

Lemarc

ANTONIO NAHUD disse...

Valeu a dica do Darci Fonseca. Muito bom o seu blog.
Cumprimentos cinéfilos,

O Falcão Maltês

Vinícius Lemarc disse...

Caro Nahud,

É uma honra tê-lo por aqui.
Receber uma indicação por parte do Darci é motivo de alegria, por todo o seu know-how e pela simpatia de pessoa que é.

Abraço!

Lemarc

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