20 de agosto de 2012

Meu Amigo Sabiá



Há algum tempo – isso já faz mesmo mais de um ano – tenho tido o prazer da companhia do canto de um afinadíssimo sabiá de laranjeira. Tenho no inalienável quintal da casa uma frondosa árvore, que sempre me trouxe variadas aves, das mais comuns como os sanhaços e cambacicas às mais difíceis como as chocas e pica-paus.

Quando digo um, na verdade, me refiro, tudo indica, a alguns bravos sobreviventes da angústia urbana. Todas as manhãs, quando os primeiros raios de sol começam a pintar o céu com as cores do dia, a trupe da vida sai semeando acordes até quase desaparecer em meio a apitos e buzinas, e às sirenes dos que correm pela vida e pela morte.  Quando o dia principia dar adeus, seguindo para a história ou para o esquecimento, meu amigo sabiá lhe entoa novamente cantos com novos agradecimentos pelo calor e pela luz que lhe dão os encantos da vida. Não sei se ele volta porque confia em mim ou se porque aqui acolá lhe deixo algo apetitoso para comer. Como disse, não posso ter certeza de que é sempre o meu sabiá que não é de ninguém. Vai que n’algum desses dias, ele manda um amigo em seu lugar, porque está ocupado com alguma sabiá faceira, seduzida pelos seus gorjeios. Ou, então, por outro motivo qualquer. Mas o que me deixa triste nessa história é lembrar que quando o vi pela primeira vez ele não estava sozinho. Estava cheio de amigos e amigas sabiás. Andavam em quatro ou cinco. Talvez fosse mesmo uma família. E, sem cerimônia, se enamoravam, chilreavam e se conversavam numa algazarra das mais gostosas, deslizando com elegância pelos galhos. Com os dias, o grupo foi diminuindo, sumindo um, depois outro, depois mais outro, até restarem dois, o casal, que já me pareciam visivelmente preocupados, como quem dá pelo sumiço de quem ama. Mas isso não foi o pior. Num fim de tarde vermelho e melancólico, ouvi um canto longo e doído que vinha do quintal. Em passos leves, apressei-me a ver o que já pressentira, após quase uma semana de espera debalde pelos velhos amigos. Ansiava rever o mais perfeito casal que vira nos últimos tempos, enquanto tentava me convencer de que os encontraria ambos trocando carinhos e cumplicidade em meio aos galhos e folhagens, e às incontáveis flores brancas-púrpuras de sol, que, somadas ao tapete floral que cobria o chão, compunham como que uma pintura impressionista. Ao deparar-me com o quadro, quase não notei sua beleza; ao contrário, ele apenas acentuou à minha frágil percepção a pureza e a aparente solitude e a quase exclusividade do canto em lamento, compassadamente repetido, como se fosse capaz de elevar à milésima potência qualquer sentimento de tristeza.

Não há mais dúvida. A força daquela imagem de súbito me tocou e fiquei estático, olhando direto, olho no olho, como que a conversar em silêncio, só eu e meu amigo. Do centro da tela ele me confidenciou que já não tinha mais muitos motivos para alegrar-se, que não sabia o que acontecera, mas seus caminhos esvoaçantes já não tinham o mesmo sentido. Estava sozinho no mundo, vivendo apenas para voar e comer, sem ter de quem cuidar. Sem ter com quem conversar. Sem mais ter quem amar. Restava-lhe apenas uma dádiva, a de poder olhar o mundo em ângulos como poucos ousaram ser capazes.

Fiquei ali com ele, até a noite se aproximar e ele sumir-se em meio às ramagens que começavam abandonar o verde pelo negro.
Depois daquele dia, ele nunca deixou de aparecer e de cantar; às vezes, demora dias para me visitar, às vezes escuto seu canto ao longe. É certo que não silenciou a voz, talvez porque ainda tenha alguma esperança de reencontrar sua vida que se foi, ou que lhe foi tirada abruptamente, de uma forma que ele não consegue entender. Quem sabe seu canto não seja ainda um recomeço, a necessária busca por alguma razão de cantar alto e de voar alegre por sobre pomares, jardins e parques, sem nunca estar como quem erra sozinho pelo mundo, e sem o medo de, de repente, desaparecer como que por encanto, como os que se foram, deixando apenas o mistério.

Esta semana, meu amigo ainda não apareceu, nem ouvi nada que fosse muito além do trinado das cambacicas ou do arrulho das corruíras. Confesso que sempre que ele se demora, fico um pouco triste, receoso que ele não volte nunca mais, esse medo que acomete a todos nós. E embora saiba que ele talvez não mais retorne, o continuo aguardando a cada fim de tarde. Na verdade, sei que qualquer hora dessas ele não vai mesmo voltar; e sempre que lembro, à noite, peço a Deus para que se ele não voltar, que desapareça mesmo por encanto, e que, seja como for, ele jamais tenha a si tomada a liberdade de poder voar e cantar nos galhos das árvores, mesmo que não seja a nossa. E aconteça o que acontecer, tenho pelo menos uma certeza: sempre guardarei impressa na alma a imagem daquele quadro vivo do crepúsculo, e ainda a certeza de que ninguém pode ser feliz sozinho.


Pela campanha “Não pegue pássaro silvestre”

Pica-Pau, Sanhaço e Choca, alguns dos nossos personagens.

Mistura de ficção e realidade, o conto acima, de certo modo, ilustra este texto que você lê. Em todo o mundo, e, em especial, no Brasil, há um velho costume, ou jeito estranho de amar os pássaros canoros: encarcerá-los em gaiolas, muitas vezes fétidas e com poucas condições gerais de sobrevivência para as aves. Esse hábito tem dizimado muitas espécies, e, embora o Estado, por meio das tímidas ações protetivas, em razão do escasso investimento na área, tenha alcançado alguns avanços no combate a esse tipo de prática, ainda não conseguiu obter resultados que possam mudar substancialmente o panorama.

   Coleira, Canário da Terra e Curió, aves silvestres de canto magnífico.

Há dos pequenos caçadores aos grandes esquemas de contrabando, que juntos são responsáveis por uma enorme fatia do estrago na nossa fauna passeriforme, ao lado da destruição de seu habitat, com a consequente fuga de remanescentes de muitas espécies para áreas urbanizadas. Quando na cidade, muitas delas continuam perseguidas, seja por pardais, seja por pequenos caçadores ou por meninos que usam estilingue e que quase não são sensibilizados para o problema, seja em casa, seja na escola. Para aqueles que, como eu, gostam de ouvir sabiás, bicudos e canários, uma sugestão razoável é comprar aves legalizadas, provenientes de criadouros especializados. Digo razoável porque acredito que a melhor coisa que poderia acontecer é que conseguíssemos criar uma nova consciência, a de que não devemos criar pássaros em gaiolas, mas as termos em grande quantidade e variedade cantando soltas pelas cidades e pelos campos, despreocupadas da predação humana. Como na história acima, é imensamente mais bonito um pássaro cantando à solta. Plantemos, pois, mais árvores frutíferas para eles, e deixemo-los em paz para reproduzir e voar livremente. Claro que não é possível sermos radicais tentando mudar de modo truculento e impositivo uma mentalidade de centenas de anos, portanto, incentivemos a mudança de hábito, o que lentamente já vem ocorrendo, mas talvez possa ser acelerado. O uso das redes sociais como o poderoso Facebook, pode ter um papel importante na aceleração dessa conscientização. Fica a sugestão ao pessoal que participa ativamente dessas redes, que comecem a criar esse tipo de movimento, de campanha, para que evitemos de ter ainda a extinção de várias espécies, e para que possamos ver nossas cidades e o campo novamente povoados por pássaros diversos, qual sejam curiós, coleiras, canários da terra, etc., cada vez mais raros. Deixemos, pelo menos por ora, as gaiolas para as aves que já nascem nelas, como os canários do reino e as belas aves exóticas, como os mandarins, os manons e os calafates, ou algumas espécies silvestres reproduzidas em cativeiro. E, sempre que possível, se houver disponibilidade de espaço, que se dê preferência aos viveiros em jardins, com plantas frutíferas, arbustos e congêneres. Eles, além de belos, reconstituem um pouco da vida natural dos bichos.

Manon,  Mandarim, Calafate e Canário do Reino, aves exóticas, com destaque para o primeiro,  exemplo de dedicação aos filhos.

Mas não esqueçamos, repovoemos os ares, ou ainda melhor, deixemos que os próprios pássaros o façam, e passemos a ver e a ouvir nossas aves silvestres soltas nos nossos quintais, na pracinha ou no caminho para o trabalho. Nossos filhos também adorarão.

Paremos de esperar pelos políticos ou pela lei e suas reprimendas e comecemos fazendo a nossa parte para termos um país mais bonito.

Abraço!



2 Comentários
Comentários

2 comentários:

Capotyra disse...

Querido

Certíssimo! Tal beleza tem que viver, ser cuidada e amada, como se fossem nossos filhos!

Vinícius Lemarc disse...

Felizmente, hoje o homem tem um pouco mais de consciência da necessidade de preservar seu próprio ambiente, por todas as razões que se podem apresentar, mas ainda há muito o que se fazer para que se encontre o ponto de equilíbrio para que isso seja, de fato, possível.

Um abraço, cara(o) visitante!

Vinícius Lemarc

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