Há algum tempo –
isso já faz mesmo mais de um ano – tenho tido o prazer da companhia do canto de
um afinadíssimo sabiá de laranjeira. Tenho no inalienável quintal da casa uma
frondosa árvore, que sempre me trouxe variadas aves, das mais comuns como os
sanhaços e cambacicas às mais difíceis como as chocas e pica-paus.
Quando digo um,
na verdade, me refiro, tudo indica, a alguns bravos sobreviventes da angústia
urbana. Todas as manhãs, quando os primeiros raios de sol começam a pintar o
céu com as cores do dia, a trupe da vida sai semeando acordes até quase
desaparecer em meio a apitos e buzinas, e às sirenes dos que correm pela vida e
pela morte. Quando o dia principia dar
adeus, seguindo para a história ou para o esquecimento, meu amigo sabiá lhe
entoa novamente cantos com novos agradecimentos pelo calor e pela luz que lhe
dão os encantos da vida. Não sei se ele volta porque confia em mim ou se porque
aqui acolá lhe deixo algo apetitoso para comer. Como disse, não posso ter
certeza de que é sempre o meu sabiá que não é de ninguém. Vai que n’algum desses
dias, ele manda um amigo em seu lugar, porque está ocupado com alguma sabiá
faceira, seduzida pelos seus gorjeios. Ou, então, por outro motivo qualquer.
Mas o que me deixa triste nessa história é lembrar que quando o vi pela
primeira vez ele não estava sozinho. Estava cheio de amigos e amigas sabiás.
Andavam em quatro ou cinco. Talvez fosse mesmo uma família. E, sem cerimônia,
se enamoravam, chilreavam e se conversavam numa algazarra das mais gostosas, deslizando
com elegância pelos galhos. Com os dias, o grupo foi diminuindo, sumindo um,
depois outro, depois mais outro, até restarem dois, o casal, que já me pareciam
visivelmente preocupados, como quem dá pelo sumiço de quem ama. Mas isso não
foi o pior. Num fim de tarde vermelho e melancólico, ouvi um canto longo e
doído que vinha do quintal. Em passos leves, apressei-me a ver o que já
pressentira, após quase uma semana de espera debalde pelos velhos amigos. Ansiava
rever o mais perfeito casal que vira nos últimos tempos, enquanto tentava me
convencer de que os encontraria ambos trocando carinhos e cumplicidade em meio
aos galhos e folhagens, e às incontáveis flores brancas-púrpuras de sol, que, somadas
ao tapete floral que cobria o chão, compunham como que uma pintura
impressionista. Ao deparar-me com o quadro, quase não notei sua beleza; ao
contrário, ele apenas acentuou à minha frágil percepção a pureza e a aparente
solitude e a quase exclusividade do canto em lamento, compassadamente repetido,
como se fosse capaz de elevar à milésima potência qualquer sentimento de
tristeza.
Não há mais
dúvida. A força daquela imagem de súbito me tocou e fiquei estático, olhando
direto, olho no olho, como que a conversar em silêncio, só eu e meu amigo. Do
centro da tela ele me confidenciou que já não tinha mais muitos motivos para
alegrar-se, que não sabia o que acontecera, mas seus caminhos esvoaçantes já
não tinham o mesmo sentido. Estava sozinho no mundo, vivendo apenas para voar e
comer, sem ter de quem cuidar. Sem ter com quem conversar. Sem mais ter quem
amar. Restava-lhe apenas uma dádiva, a de poder olhar o mundo em ângulos como poucos
ousaram ser capazes.
Fiquei ali com
ele, até a noite se aproximar e ele sumir-se em meio às ramagens que começavam
abandonar o verde pelo negro.
Depois daquele
dia, ele nunca deixou de aparecer e de cantar; às vezes, demora dias para me
visitar, às vezes escuto seu canto ao longe. É certo que não silenciou a voz,
talvez porque ainda tenha alguma esperança de reencontrar sua vida que se foi,
ou que lhe foi tirada abruptamente, de uma forma que ele não consegue entender.
Quem sabe seu canto não seja ainda um recomeço, a necessária busca por alguma
razão de cantar alto e de voar alegre por sobre pomares, jardins e parques, sem
nunca estar como quem erra sozinho pelo mundo, e sem o medo de, de repente,
desaparecer como que por encanto, como os que se foram, deixando apenas o
mistério.
Esta semana, meu
amigo ainda não apareceu, nem ouvi nada que fosse muito além do trinado das
cambacicas ou do arrulho das corruíras. Confesso que sempre que ele se demora,
fico um pouco triste, receoso que ele não volte nunca mais, esse medo que
acomete a todos nós. E embora saiba que ele talvez não mais retorne, o continuo
aguardando a cada fim de tarde. Na verdade, sei que qualquer hora dessas ele
não vai mesmo voltar; e sempre que lembro, à noite, peço a Deus para que se ele
não voltar, que desapareça mesmo por encanto, e que, seja como for, ele jamais
tenha a si tomada a liberdade de poder voar e cantar nos galhos das árvores,
mesmo que não seja a nossa. E aconteça o que acontecer, tenho pelo menos uma
certeza: sempre guardarei impressa na alma a imagem daquele quadro vivo do
crepúsculo, e ainda a certeza de que ninguém pode ser feliz sozinho.
Pela
campanha “Não pegue pássaro silvestre”
Mistura de
ficção e realidade, o conto acima, de certo modo, ilustra este texto que você lê. Em
todo o mundo, e, em especial, no Brasil, há um velho costume, ou jeito estranho
de amar os pássaros canoros: encarcerá-los em gaiolas, muitas vezes fétidas e com
poucas condições gerais de sobrevivência para as aves. Esse hábito tem dizimado
muitas espécies, e, embora o Estado, por meio das tímidas ações protetivas, em
razão do escasso investimento na área, tenha alcançado alguns avanços no
combate a esse tipo de prática, ainda não conseguiu obter resultados que possam
mudar substancialmente o panorama.
Há dos pequenos
caçadores aos grandes esquemas de contrabando, que juntos são responsáveis por uma
enorme fatia do estrago na nossa fauna passeriforme, ao lado da destruição de
seu habitat, com a consequente fuga
de remanescentes de muitas espécies para áreas urbanizadas. Quando na cidade,
muitas delas continuam perseguidas, seja por pardais, seja por pequenos
caçadores ou por meninos que usam estilingue e que quase não são sensibilizados
para o problema, seja em casa, seja na escola. Para aqueles que, como eu,
gostam de ouvir sabiás, bicudos e canários, uma sugestão razoável é comprar
aves legalizadas, provenientes de criadouros especializados. Digo razoável porque acredito que a melhor
coisa que poderia acontecer é que conseguíssemos criar uma nova consciência, a de
que não devemos criar pássaros em gaiolas, mas as termos em grande quantidade e
variedade cantando soltas pelas cidades e pelos campos, despreocupadas da
predação humana. Como na história acima, é imensamente mais bonito um pássaro
cantando à solta. Plantemos, pois, mais árvores frutíferas para eles, e deixemo-los em paz
para reproduzir e voar livremente. Claro que não é possível sermos radicais tentando
mudar de modo truculento e impositivo uma mentalidade de centenas de anos,
portanto, incentivemos a mudança de hábito, o que lentamente já vem ocorrendo,
mas talvez possa ser acelerado. O uso das redes sociais como o poderoso Facebook, pode ter um papel importante
na aceleração dessa conscientização. Fica a sugestão ao pessoal que participa
ativamente dessas redes, que comecem a criar esse tipo de movimento, de
campanha, para que evitemos de ter ainda a extinção de várias espécies, e para
que possamos ver nossas cidades e o campo novamente povoados por pássaros
diversos, qual sejam curiós, coleiras, canários da terra, etc., cada vez mais
raros. Deixemos, pelo menos por ora, as gaiolas para as aves que já nascem
nelas, como os canários do reino e as belas aves exóticas, como os mandarins, os
manons e os calafates, ou algumas espécies silvestres reproduzidas em cativeiro.
E, sempre que possível, se houver disponibilidade de espaço, que se dê
preferência aos viveiros em jardins, com plantas frutíferas, arbustos e
congêneres. Eles, além de belos, reconstituem um pouco da vida natural dos
bichos.
Manon, Mandarim, Calafate e Canário do Reino, aves exóticas, com destaque para o primeiro, exemplo de dedicação aos filhos. |
Mas não
esqueçamos, repovoemos os ares, ou ainda melhor, deixemos que os próprios
pássaros o façam, e passemos a ver e a ouvir nossas aves silvestres soltas nos
nossos quintais, na pracinha ou no caminho para o trabalho. Nossos filhos
também adorarão.
Paremos de
esperar pelos políticos ou pela lei e suas reprimendas e comecemos fazendo a
nossa parte para termos um país mais bonito.